As minhas corridas na estrada

segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

Pisão Extreme Skyrace - O culto do desnível

Acho que é inegável que vivemos numa época de ouro do trail em Portugal. Sim, do trail. Durante algum tempo fiz tudo por resistir ao inglesismo e insisti em chamar-lhe corrida de montanha, mas acho que nem é justo para as antigas corridas de montanha estarem metidas ao barulho, até porque muitas vezes os trails que se fazem só com muito boa vontade se podem considerar na montanha. Esse, o trail, existe em Portugal há pouco mais de dez anos e quer eu, que ando nisto há meia dúzia de anos, quer aqueles que começaram em 2018 estão a experiênciar o nascer de uma nova modalidade desportiva no nosso país. Tem sido exponencial de ano para ano o surgimento de novas provas. Umas morrem, outras criam raízes. Temos assistido a verdadeiras loucuras nas corridas a inscrições, mesmo com preços muitas vezes proibitivos. Há muitos que vaticinam a insustentabilidade disto, que são provas a mais, que o pessoal não pensa no futuro, que mais ano menos ano já ninguém liga ao trail. Não podia estar menos de acordo. Adoro ver o dinamismo deste desporto pelo qual me apaixonei. Adoro descobrir novas provas e organizações e com isso novos recantos do nosso país. Adoro que se arrisque na criação de novos desafios e sentir a dedicação das dezenas de pessoas que hoje em dia raramente organizam uma má prova, porque essas rapidamente desaparecem do mapa.

Nos 6 ou 7 anos que pratico trail participei em inúmeras boas corridas. Mas raramente acabei uma prova a sentir que se tinha passado algo especial, algo diferente de tudo o resto. Curiosamente, aconteceu duas vezes este ano, o que mostra bem a vitalidade do desporto. Primeiro na Serra Amarela e finalmente na maior surpresa do ano: a inacreditável Pisão Extreme Skyrace.

Foto fantástica retirada do feed da organização
Chegámos ao Bioparque de Carvalhais, no sopé da Serra da Arada, às 7:30, meia hora antes da partida. Saímos de São Pedro do Sul debaixo de um nevoeiro cerrado. A minha esperança que fossem nuvens baixas confirmou-se quando chegámos perto da cota 500 e se começaram a ver os contornos da montanha. Estava um dia frio e previa-se céu limpo, condições ideais. O ambiente na partida estava muito bom, cerca de 150 atletas e muitos familiares aguardavam juntos enquanto o sol nascia. O Joca ia animando as hostes e reencontravam-se amigos destas andanças, até que às 8 em ponto, hora e meia depois da partida da prova grande, lá fomos nós!

Fotografia à chegada do Parque. A única que tirei o dia todo....
Trezentos metros de alcatrão e entrámos no trilho. Surpresa: era a subir! Não sei se já ouviram as "estatísticas" desta corrida, tem uns impressionantes 3200D+ em menos de 35km! Simplesmente não há espaço para terreno plano e todas as inclinações são monstruosas. O entusiasmo inicial ainda levou muita gente a trotar nesta primeira subida, que nos levaria até perto dos 900m. Primeiro em trilhos fáceis, mas à medida que fomos ganhando metros à encumeada a coisa foi-se complicando até estarmos a saltitar numa crista de maciços de granito gigantes.


A partida estava situada no extremo sul da Serra, por isso só entrámos verdadeiramente na montanha depois de virarmos os 1100m pela primeira vez, pelos 5km. Só vos digo que foi de cortar a respiração. Pequenos amontoados de nuvens preenchiam os vales mais profundos enquanto as pregas verdes e castanhas das encostas davam um relevo quase surreal à montanha. Tive que parar um pouco antes de me fazer à descida para absorver aquilo. Até ia tirar o telemóvel da mala para tirar uma foto, mas os bombeiros que lá estavam devem ter estranhado ver-me parado e começaram a dizer "é aí à direita!!". Pronto, deixa lá a fotografia...

O que vale é que alguém as tira por mim
Foi aqui nesta primeira descida que a prova se começou verdadeiramente a revelar. A primeira subida, dividida em dois por 1km a descer ali pelo meio, passou tão depressa que nem me lembro dela, mas lembro-me perfeitamente de descer por um dos dedos da garra, num trilho super técnico e desafiante. A inclinação era brutal, como não podia deixar de ser, e parecia que quanto mais descíamos mais ela empinava. O trilho era maravilhoso, com bocados corriveis a intercalar o martelar super técnico da maioria do caminho. Era no entanto impossível correr descansado ou descontraído, o trilho exigia uma total concentração. Chegámos ao primeiro abastecimento, em Gourim, já depois de virar o fundo do vale e escalar uma pequena parede. Quase hora e meia para os cerca de 8km, entrei no abastecimento quase em euforia. Virei-me para trás e vi finalmente a famosa Garra em todo o seu esplendor, com pontos coloridos a rasgar uma das cristas. Incrível.

Fotografia da Garra pela organização. Não sei qual foi o dedo que descemos.
Tal como na Zela, lá estava um senhor dedicado exclusivamente a fatiar um presunto. Obviamente que não quis desvalorizar o esforço e comi umas 4 ou 5 fatias empurradas com isotónico. A digestão foi feita numa "pequena" subida de 200+ feita a escalar uma cascata seca, até que virámos mais um monte e iniciámos a descida para a Aldeia Mágica de Drave. Oiço falar desta aldeia há anos, estava muito curioso por a conhecer e não defraudou as expectativas. Perfeitamente entalada no meio de encostas enormes, sem o menor dos comodismos, pareceu uma viagem no tempo. Mas nem deu para respirar porque imediatamente a deixámos para trás em mais uma subida a pique.


Esta foi a parte mais alucinante da prova. Foram 3 subidas e 2 descidas seguidas, todas com perto de 1km e 300m de desnível! O mais impressionante foi o vale a seguir a Drave. Enquanto descíamos para mais uma vez nos enterrarmos no fundo, uma parede, que parecia perfeitamente vertical, erguia-se à nossa frente. Desde o inicio da descida que a estudava pelo canto do olho, à procura de uma pequena aberta que desse para aliviar a subida, mas ela parecia infinita. Como uma onda que se vai formando lá ao fundo e vai crescendo até estar a rebentar mesmo em cima de nós. Até que finalmente vi uns pontos amarelos a rasgar a encosta. Tive que parar e apreciar aquilo com calma. Era perfeitamente vertical! Continuei a descida com um sorriso de orelha a orelha, ansioso por chegar à base daquela loucura! 

Já fiz muitas subidas. Em Portugal, nos Alpes e nos Pirinéus. Já fiz duplos km verticais, já subi aos 3500m na Serra Nevada, mas uma coisa daquelas nunca tinha visto. Uma subida completamente selvagem, sem trilho, vertical. Do ponto mais baixo ao ponto mais alto, era só isso que precisávamos de saber, depois era só vencer os 40% de inclinação MÉDIA daqueles 800m. Os bastões eram inúteis, deixei-os pendurados nos pulsos enquanto usava as mãos para me elevar no xisto afiado. As marcações muito espaçadas indicavam apenas o ponto inicial e final, não havia trilho para seguir. Que maravilha. Tenho a certeza que aquilo foi cansativo, mas sinceramente não me consigo lembrar de ir em esforço!
O companheiro Vasco em plena jornada de trabalho.
Depois de descer para o segundo abastecimento, em Covas do Monte, faltavam apenas dois montes até ao final, os mais longos. O primeiro, logo a seguir ao abastecimento, levou-nos a subir o famoso Portal do Inferno. Completamente enfiados numa garganta apertada, com cascatas e ribeiros por todo o lado, o trilho subia por patamares intermediados com pequenas descidas. Super técnico do inicio ao fim. Uma subida lindíssima, bem embrenhada na montanha. A descida seguinte, para o terceiro abastecimento, em Fujaco, foi das mais longas e fáceis. Uma espécie de miminho da organização. Quase 3km em estradão a fazer lembrar os zigue-zagues do Açor, percorridos a muito bom ritmo, com pernas de quem estava em prova há mais de 4 horas mas praticamente ainda não tinha tido oportunidade de correr. 

Covas do Monte, tirado do Google
Apenas uma maminha nos separava da meta, mas era precisamente a maior. A subida tinha nada mais nada menos que 500+ em 1.4km! Mais uma vez completamente exposta, selvagem, sem trilho. Tínhamos que ir a trabalhar do inicio ao fim, à procura do caminho que implicasse menor amplitude de movimentos. Depois daquela loucura que vos falei lá atrás foi a minha segunda subida preferida da prova, demorei 40 minutos a vencê-la! O melhor de tudo foi chegar ao estradão na encumeada, que subia ligeiramente, e as pernas responderam imediatamente ao trote! É uma sensação impagável. Mesmo antes de virar para a descida olhei para o relógio e vi 28km com 3000+. 

Os 5km finais têm pouca história. Uma espécie de bonança depois da tempestade que foram os primeiros 30km. Sempre em trilho, lá fomos ganhando metros até que a voz do Joca estava mesmo já ali. Cruzada a meta ainda nos ofereceram um par de meias da socks by personalizadas com o logo da prova e um almoço de frango no churrasco.

Ainda não há fotos da chegada vai esta que está gira.
Disse e repito: sou fã desta organização. Se conseguir, não vou falhar uma prova deles. O Pisão foi absolutamente memorável, correu tudo na perfeição e até um dia esplendoroso ajudou à festa. O percurso foi do mais desafiante que já apanhei, violentíssimo. Não é de todo para estreantes e é bom que se perceba isso antes de fazer a inscrição. Um ambiente muito familiar, ao que as poucas inscrições disponibilizadas contribuíram muito. Que assim se mantenha! Muitos parabéns a todos os envolvidos, tenho mesmo a impressão que foi um dia especial e podem estar de peito bem inchado porque fizeram história no nosso desporto!

Parabéns a todos, e obrigado!
Quanto à minha prova, dificilmente podia pedir melhor! Não tive um momento baixo durante todo o percurso e senti sempre que tinha pernas. Em termos de tempo final foi bem melhor do que tinha projectado, mas também é difícil fazer previsões neste tipo de percurso. Foram 6h34 para os 35km, o que me valeu um 18º lugar nos quase 150! Nada mau! 

Agora venha o Natal, os doces e a comida e....bah, quem é que eu quero enganar? Que se lixem os doces, eu quero é desnível!

quarta-feira, 14 de novembro de 2018

As 10 provas da minha vida

Sim, eu sei. Não faço isto há tempo suficiente para fazer uma lista destas, é como aqueles futebolistas que "escrevem" biografias aos 30 anos. Mas o Quarenta e Dois é meu e eu é que mando, por isso, quer queiram quer não, aqui vai, por ordem cronológica, uma lista com as 10 provas da minha vida (até aos 35 anos e 3 meses):

1 - Meia Maratona de Portugal 2005


Esta é óbvia: foi a primeira. Tinha deixado a natação há 2 ou 3 anos e logo a seguir passado por ano e meio de engorda (que coincidiram com os primeiros dois anos de faculdade, vá-se lá saber porquê), cheguei a pesar mais 15kg do que peso agora. Tirando aqueles dois anos toda a vida fiz desporto, por isso nunca me preocupei com o peso ou comida, mas isso mudou tudo quando umas miúdas se meteram comigo porque eu estava gordo. Decidi que tinha que fazer alguma coisa e como até gostava de correr passei a fazê-lo uma ou duas vezes por semana. Passado algum tempo de umas corridas muito pouco frequentes, influenciado pelo meu Tio Pedro, maratonista, decidi inscrever-me na meia da 25 de Abril. Na altura não haviam aplicações de telemóvel nem relógios com GPS, por isso as minhas voltas eram mais ou menos medidas de carro aqui por Almeirim. Não fazia a mínima ideia do que era correr 21km, tão pouco estratégias, ritmos, tempos, alimentação... Lembro-me que passei aos 10km já em esforço e que a partir dos 15 passei pelo inferno. Andei 3 ou 4km, fiquei completamente esgotado, desidratado (achava que beber água podia fazer mal à barriga, por isso não bebi durante a prova), assustado... Passei a meta com 2h10 e a seguir demorei mais de uma hora a fazer os 2km a andar até ao carro do meu tio, tive que me sentar dezenas de vezes no chão e até me cheguei a deitar. Cheguei ao pé dele completamente branco com ar aflito. Lembro-me de ele se estar a rir e eu lhe dizer "Estou morto. Temos que fazer outra!".


2 - Maratona de Barcelona 2012

Desde aquela meia em 2005 muito se passou. Corri várias vezes a distancia, outras quantas os 20km de Almeirim, algumas provas de 10km e finalmente a maratona de Lisboa em 2011. Esta ultima foi um fiasco. Mais uma vez, fui para lá à pato bravo, sem qualquer noção do que era preparar e gerir uma maratona (uma coisa é verdade, na altura, e nem foi assim há tanto tempo, não havia nem perto da informação disponível que há agora). Sofri a bem sofrer depois de bater no muro e arrastei-me pelo Martim Moniz acima para finalmente chegar ao estádio Primeiro de Maio em 4h07. Fiquei de tal forma esgotado e amassado que decidi no espaço de 2 ou 3 dias fazer a Maratona de Barcelona, 4 meses depois :) Foi aí que tudo mudou. Decidi que dessa vez ia fazer as coisas como deve ser. Procurei um plano de treino na net e segui-o religiosamente. Senti a forma a subir inacreditavelmente semana após semana. Li dezenas de relatos de maratonas, aprendi a teoria sobre gerir os 42km, sobre ritmos, alimentação, etc. Barcelona foi perfeito. Correu tudo na perfeição. Acabei com força, com split negativo, sem nunca ter passado por dificuldades. O tempo não foi nada de especial, 3h52, mas o que faz Barcelona entrar nesta lista foi perceber que o trabalho e diligência são recompensados. Nesse dia percebi, claro como a água, que a Maratona é a prova justa.


3 - Trail Serra da Lousã (30km) 2012

Estava a treinar para a minha terceira maratona, segunda em Lisboa. Pela primeira vez ia tendo companhia nos treinos, do João Pedro. Um dia, num jantar lá em casa, decidimos que o treino longo dessa semana podia ser feito num desses trial ou trail ou lá como se chamam... Havia um na Lousã, até era perto, tinha 30km. Ok, siga! Fomos equipados "à estrada", sem ter a mínima noção do que nos esperava. Já a dar um descontozinho, disse à Sara que devia demorar umas 3h30 (LOL)! Chegámos lá e estava a chover torrencialmente, um dia de Outono clássico na Lousã. Lá fui eu, com as minhas Nike Vomero, garrafinha de água de meio litro na mão e corta vento amarelo vestido. Choveu a prova INTEIRA. Lama com fartura, xisto escorregadio, ribeiros a transbordar, descidas de rabo, trovoada.. Seis horas depois de começar liga-me a Sara "nem imaginas, isto é o inferno, ainda me falta, depois falamos". A sensação que fiquei foi que tinha ido à tropa. Fui sovado a torto e a direito pela Serra, foi tão agressivo que jurei que nunca mais faria trail, ou trial, ou lá como se diz!!!



Esta foi sem dúvida a minha melhor maratona. A quinta vez na distância e a segunda internacional, depois de Barcelona que já vos falei. Uma preparação sem falhas e uma gestão perfeita resultaram no record pessoal na distancia, 3h19 (apenas uns segundos mais rápido que no Porto em 2016). Foi ainda uma das primeiras viagens para provas com a minha filha mais velha, que não tinha um ano. Um fim de semana muitissimo bem passado por todas estas razões. Mas o que me faz acrescentar esta corrida à minha lista não é nenhum dos motivos referidos. Esta foi a primeira prova sobre a qual escrevi um relato e deu origem a este blog! Acreditem que não estou a exagerar quando digo que a minha vida mudou por causa do Quarenta e Dois. Adoro escrever e receber o vosso feedback, mas a quantidade de gente que entrou na minha vida por causa disto é impressionante. A partir daqui as corridas da lista têm o respectivo relato, é só clicar ali no link.



Já tinha feito 3 ou 4 ultras a rondarem os 50km e achei que era altura de dar um passo maior. Percebi rapidamente que o passo foi bem maior que a perna, particularmente enquanto subia um monte já na parte final da prova e não conseguia dar mais que 2 ou 3 passos por minuto. Foi uma das provas onde tive que ir mais ao fundo buscar sabe-se lá o quê para conseguir acabar. Pela primeira vez tive a noção perfeita de que numa ultra vivemos várias vidas, morri, ressuscitei, voltei a morrer e reanimar... No final de 14 horas voltei à Régua e fui recebido pelo saudoso João Marinho com um high-five e dois dedos de conversa. Nunca mais me vou esquecer desse momento nem da implacável Serra do Marão.



O ano da calamidade. Os Abutres já eram conhecidos por serem uma prova extrema, mas este ano mudou tudo. Este foi o ano que meteu o Épico nos Abutres. Um dilúvio como nunca mais se viu, trovoada, gelo e uma Serra da Lousã que decidiu naquele dia mostrar-nos a todos como somos insignificantes. Para mim, foi uma tempestade perfeita. A juntar às condições climatéricas extremas uma série de erros de principiante deixaram-me no fio da navalha durante as 10 horas que lá andei. Foi sem dúvida das maiores aventuras que já vivi e resultou nalgumas lições que nunca mais esqueci e no meu relato preferido aqui no blog.

Para saber do que isto se trata, favor seguir o link para o relato :)

O MIUT. O inevitável MIUT. Esta lista está por ordem cronológica, mas se fosse por ordem de importância o MIUT 2015 estaria destacadissimo em primeiro lugar. Mudou tudo. Fez-me ver a corrida de montanha de outra maneira, fez-me ver a mim próprio de maneira diferente. Apaixonei-me pela ilha e por esta prova, tanto que em 2019 vou para a minha quinta travessia consecutiva. É a melhor prova do mundo, tem tudo.



O UTMB apareceu na minha vida quase como uma espécie de ponto de passagem obrigatório na vida de qualquer corredor de montanha. Não devia ser assim, na verdade inscrevi-me na prova pelas razões erradas e ainda por cima tive o "azar" de me calhar logo à primeira. Não estava preparado para aquela enormidade, mesmo já tendo feito 4 ou 5 provas de 3 dígitos, incluindo dois MIUTs. No entanto, como em quase todos os impulsos que vou tendo nisto das corridas, o que aparentemente é uma má decisão acaba por moldar muito do que se passa no futuro. O UTMB foi virado depois de um sofrimento atroz, mas ir à meca do trail correr nas montanhas mais bonitas do planeta, passar por um buraco tão grande como passei e sair do outro lado vivo, sentir o apoio da família e amigos e finalmente chegar àquela praça de Chamonix 44 horas depois e ter a minha família a esperar-me é algo que ficará para a vida.

Also, melhor foto de sempre para sempre :)

A MITIC ia contra tudo o que eu achava que gostava no trail. Super agreste, com trilhos técnicos do inicio ao fim e um acumulado que não lembra a ninguém, 10.000D+, o mesmo que o UTMB em menos 60km. Achava eu que gostava de trilhos fáceis, de provas longas mas acessíveis. Foi a prova de três dígitos que me correu melhor até hoje e onde me senti mais imerso na montanha. Uma antítese completa das multidões do UTMB, cheguei a andar horas sozinho enquanto assistia ao segundo nascer do sol da empreitada, no vale mais abismal que já vi. Demorei 34 horas. Mais 21 horas que demorei a cumprir a mesma distancia em Abrantes, por exemplo. Passei por tempestades, cometi erros de principiante, transpus cristas e vias-ferratas perigosas. Tornei-me finalmente num correr de montanha depois de virar esta prova.



A entrada mais inesperada nesta lista, mas esta foi provavelmente a melhor prova que já participei. Puro Sky Running: subir e descer ao ponto mais alto da montanha pelo caminho mais curto possível, tal como se fazia na origem desta vertente, na ascensão e descida ao Monte Rosa, nos Alpes, em 1993 (a diferença é que o Monte Rosa tem mais de 4000m de altitude). Tive a sorte de apanhar um fim de semana perfeito, com chuva torrencial durante a noite, o que tornou o percurso super desafiante, mas a organização perfeita ajudou muito a que esta prova se tenha tornado absolutamente memorável. No meu relato chamei-lhe uma pérola, agora só quero ter a sorte de poder participar em 2019!


terça-feira, 13 de novembro de 2018

Trail de Casainhos 2018 - Reunião de família

Mais uma vez, aconteceu Casainhos!

Pelo quinto ano consecutivo, o inicio de Novembro é marcado pela ida a Casainhos. Quinto ano que vou escrever um texto sobre uma prova da qual aparentemente não teria nada de novo a dizer. Afinal de contas o percurso é mais ou menos sempre o mesmo, o almoço também nunca foi diferente, até as pessoas vou vendo as mesmas ano após ano. Mas a verdade é que nunca resisto a escrever sobre este domingo, invariavelmente um dos melhores do ano. Em nenhuma outra prova do país me sinto tão em casa. Todos me tratam pelo nome. Desconfio que é assim com quase todos os 300 que lá vão, mas não quero saber. É como se fizesse parte da família.

É isso, família.

O Trail de Casainhos é como se fosse um daqueles ajuntamentos familiares em que se matam saudades dos avós e daqueles tios que não vemos há meses. Há riso, boa disposição, comida com fartura em cima da mesa e um almoço que se prolonga até meio da tarde!

Este ano choveu. Não, desculpem, acho que não passei bem a mensagem. Este ano CHOVEU. Estava a chover quando fomos levantar o dorsal, estava a chover durante a prova e continuou a chover enquanto estávamos a almoçar. A certa altura, durante a corrida, a chuva era tanta que tinha dificuldades em ter os olhos abertos e ver o caminho! Condições perfeitas, diria eu, para uma prova com cerca de 14km e 660 metros de subida onde o ritmo é sempre elevadíssimo. Não há cá tempo para sentir frio ou para gestão de esforço, é prego a fundo do primeiro ao ultimo segundo!

Há coisas que não mudaram mesmo nos ultimos 5 anos. O meu ar envergonhado, o ar ameaçador do Sommer e o facto de chegar à frente dele. Sim, sim.. para o ano é que é, diz ele.
Foi isso que fiz. Às 10:45 arranquei a ritmos perfeitamente anormais para mim numa prova de trilhos, de repente estava no grupo dos 5 primeiros a correr abaixo de 4. Tenho notado ultimamente que demoro uns bons 20 minutos até começar a sentir-me bem a correr, talvez por isso aquela primeira subida em trilho tenha sido tão massacrante! Mas não havia tempo para pensar nisso, lancei-me na descida atrás do Zeca e ultrapassamos mais um na subida seguinte em estradão. Íamos em 3º e 4º! Descemos furiosos pelos trilhos técnicos de Casainhos para o que pensava serem cerca de 3 ou 4km rolantes antes de atacarmos a parede da prova, mas este ano houve uma alteração e tivemos uma boa subida em single track antes de lá chegar. Comecei a subir a trote à frente do Zeca e a aproveitar os pequenos patamares mais planos que o zigue-zague do trilho proporcionava, mas percebi depressa que a minha respiração estava muito mais ofegante que a dele, ainda lhe ofereci passagem algumas vezes, o que acabou por acontecer logo no inicio da parede da prova.

A parede de Casainhos é mítica. Não é uma mega subida, ainda assim ainda vence 160+ em 500 metros, mas tem algumas características muito engraçadas. Primeiro é muito exposta, o que neste dia de diluvio foi significativo, depois é toda feita num trilho bastante inclinado e trabalhoso, e finalmente tem um patamar a meio que não deixa ver a segunda metade da subida até o transpormos. Ou seja, tudo o que uma boa subida de montanha deve ter, mas em ponto pequeno! É espetacular ouvir os comentários do pessoal que não costuma correr em montanha.


Nunca uso fita para registar a frequência cardíaca, mas é nestes momentos que gostava de ter isso. Tenho a certeza que todos os 500 metros foram feitos bem no limite. Ainda assim o limite não foi suficiente, o Zeca fugiu definitivamente e ainda me apanharam mais dois companheiros que vinham logo atrás. Quando cheguei lá acima não sabia se havia de vomitar ou atirar-me para o chão a chorar. Decidi ficar pela terceira opção, que foi desatar a correr atabalhoadamente pelo estradão, entretanto transformado em rio, com água a meio da canela.

Até ao fim ainda fui vendo o Carlos, que ia em 5º, mas apesar de ir ganhando terreno nas descidas nunca o consegui acompanhar nas subidas. Cheguei ao campo do S.C. Casainhos com 1h15 em 6º, 20 segundos atrás do Carlos e 4 minutos depois do 1º! Eu sei que só faço estes "brilharetes" quando não há concorrência, mas, porra, é uma adrenalina do caraças ir a controlar as posições sempre no limite. Uma prova à Tiago Godinho!

Mas este ano o destaque de Casainhos esteve longe de ser o meu sexto lugar. Muito longe! As verdadeiras campeãs foram a Sara, a Sra. Ribeiro e as mulheres do Zeca, Salvador e Diogo (lembram-me do acampamento na Freita Sky Marathon?). As 5 propuseram-se a fazer a simpática e acessível (pensavam elas) prova de Casainhos. Tirando a Sra. Ribeiro, todas tinham zero experiencia de trilhos e apanharam logo o maior diluvio que vi nos últimos anos. Às tantas já estávamos os 5 à espera delas e a conjeturar se teriam o que era preciso para acabar. Achámos que chegariam mal dispostas e prontas a baterem-nos! Não podíamos estar mais enganados. Passadas 3h15 de lama, quedas, corrida, chuva torrencial, trilhos técnicos e paredes transpostas lá entraram as 5 na reta da meta, a correr, sorridentes, umas ao lado das outras. Foi lindo! Uma festa enorme, gargalhadas e vídeos, vinham a explodir com histórias para contar, mas essas tiveram que esperar pelo urgente banho quente.

Foto de família
O terceiro ato deste domingo perfeito foi nas mesas do almoço. Elas 5, nós os 5, mais o João e o Bruno, colegas de trabalho que arrastei para esta vida, e o Ângelo, uma espécie de irmão que tenho desde o primeiro dia de faculdade, em 2002, e que também se estreou nos trilhos neste dia. Tenho a certeza que às dores musculares da corrida se juntaram também maxilares doridos de tanto rirmos, por entre pratos de feijoada, canja e arroz doce. Depois do café, lá para as quatro da tarde, quando os lábios das raparigas finalmente perderam a cor roxa do frio e a feijoada pesava como um tijolo na barriga, lá fomos para casa para uma merecida sesta no sofá.

Com o Ângelo

Que dia perfeito.


Acho que sei porque é que vejo sempre as mesmas 300 pessoas ano após ano em Casainhos. São as 300 pessoas que sabem que este é o segredo mais bem guardado do trail Lisboeta e não perdem tempo a inscreverem-se antes que esgote. Os outros... fiquem atentos em 2019, a família pode sempre aumentar! :)

segunda-feira, 29 de outubro de 2018

20km de Almeirim 2018 - 13x20km com direito a urso.

Este domingo completei pela décima terceira vez os 20km de Almeirim. Já escrevi por aqui algumas vezes sobre os 20, não há muito mais que possa dizer. Ano após ano vejo a vitalidade de uma pequena cidade demonstrada numa corrida que já vai na 32ª edição.  Dizem que Almeirim é a terra da Sopa da Pedra, do melão, das caralhotas, do vinho... para mim é tudo isso, mas principalmente Almeirim é a terra dos 20. 

Outra coisa que me deixa orgulhoso e que, como até foi referido pelo presidente na câmara, garante a vitalidade e continuidade da prova é a participação massiva de atletas locais. Este ano eram 72 nos 20km a concorrer aos pódios do concelho. Uma espécie de prémios para os melhores da rua, mas deixem-nos ter as nossas motivações! Assisti de fora aos 20 durante muitos anos, até que em 2005 finalmente me estreei. É um orgulho ver anualmente este culminar de treinos pela terra, de excitação e antecipação e principalmente de alegria por ver amigos a estrearem-se ou a fazerem marcas melhores anos após ano. Nos dias seguintes parece que há um fenómeno local em que toda a população da cidade flutua numa nuvem de endorfinas. Desde atletas, a organizadores e familiares e apoiantes, todos falam com excitação de mais edição da nossa corrida. 

Este ano estava bastante frio e um vento forte e gelado, o que afastou muita gente da rua. Mesmo assim condições melhores que os 20 e muitos graus do ano passado! Tinha decidido há muito que devido a ter feito os 100km de Abrantes na semana anterior, os 20 seriam apenas para rolar e acompanhar algum amigo. Enfim, acho que já nem eu me levo a sério... A meio da semana passada, quando vi que as pernas ainda mexiam com alguma facilidade, decidi que ia ser a fundo. Como não há milagres tinha a noção que mais cedo ou mais tarde iria quebrar, por isso a estratégia seria adoptar um ritmo um pouco mais conservador na primeira metade e tentar adiar ao máximo a inevitável marretada.

O plano era ir até Santarém, 11km, a rondar os 4'10'' de média. Com o que não contava era o vendaval impressionante que apanhámos nos 5km de descampado até lá, principalmente em cima da ponte. Como eu às vezes acho que sou mais esperto que os outros, lá me ia posicionando atrás de um comboio de atletas a tentar apanhar menos vento de frente, mas acho que todos tiveram a mesma ideia. Quem diria... Já em cima da Ponte D. Luís não havia fila indiana que nos safasse, o vento lateral descarrilava tudo o que era comboio.

Fotografia da Fátima aos 4km. Ainda dava para sorrir e acenar para a foto
A coisa estava a resultar. Estava a sentir-me bem no retorno e o inicio um pouco mais rápido que o previsto compensou a perda de velocidade pelo vento, quando virei para Almeirim a média estava nos 4'11'' ou 12''. O melhor de tudo foi levar com o vento nas costas a caminho de Almeirim. As pernas soltaram-se imediatamente e os 5km até Almeirim foram feitos abaixo de 4'10'' sem grande esforço.

Entrámos em Almeirim aos 16km e comecei a pensar que talvez me safasse. Estava a escapar-me por entre os pingos da chuva com uma média interessante e a menos de 4km da meta. Tu queres ver que dá…

Isolado, com o vento pelas costas, a entrar em Almeirim
Com a entrada em Almeirim era altura de encher mais um pouco de chouriço para dar os 20km. Para mim, é o único problema deste percurso em comparação com o que nos levava a Alpiarça. Com o anterior, vindos de Alpiarça, era direto para a meta. Foi então que mesmo à entrada do 18º km apareceu um urso no percurso que me ia arrancando metade da barriga com uma patada. 

Pouco depois do urso me f....lixar
Uish! Foi do nada! Sem aviso prévio. Uma dor de burro brutal em todo o abdomen fez-me parar imediatamente, sem hipótese de lutar! Ainda tentei caminhar um passos mas nem isso, tive que parar por completo, dobrar-me e tentar controlar a respiração para passar a dor. Passado uns segundos lá consegui caminhar. Fi-lo por uns 100 ou 200 metros antes de arriscar a correr. Primeiro devagarinho e depois lá fui conseguindo relaxar e voltar a correr. Uau! Nunca me tinha acontecido de maneira tão fulminante! Claramente atingi ali o meu limite e o meu corpo travou-me sem dó nem piedade, não tive "pernas" para aquele ritmo, apesar de ter ficado lá perto.

Depois disso lá consegui voltar a ganhar velocidade até à meta e acabei a correr bem, mas ainda hoje tenho dores agudas na barriga. 

Reta da meta, fotografia da Sara
No final acabei com um tempo que me agradou, 1h25. Desde 2011 que não faço acima da hora e trinta. Longe do meu record na prova, que é 1h21, mas isso é doutro tempo, quando treinava exclusivamente para a maratona. 

Foi mais uma manhã excelente, onde tive o prazer de ver amigos a superarem-se e encontrar muitas caras conhecidas, inclusive aqui da blogosfera. Para o ano há mais e, aconteça o que acontecer, lá estarei.


Ah, pois, no fim ainda fui ao pódio com estes dois marmanjos do meu escalão, o M35 (eish, já não sou sénior, sou veterano). Mas, já sabem, este não conta, é só para o pessoal lá da rua :)

Aqui está a actividade no Strava e, já agora, passem aqui pelo meu Instagram. Ultimamente tem havido para lá coisas...

domingo, 21 de outubro de 2018

Trail Abrantes 100

O Trail de Abrantes é trail, mas não é trail. O Trail de Abrantes tem 2400D+ mas não tem subidas. O Trail de Abrantes tem muitos estradões, não é sky nem técnico nem de "dureza extrema", ou lá como se diz. O Trail de Abrantes não é nada disso e mesmo assim saí do Trail de Abrantes amassado como há muito não ficava e, melhor de tudo, completamente nas nuvens! Acompanhem-me nesta viagem de 13 horas pelos estradões do Ribatejo.

Primeira de muitas fotos nesta publicação da autoria do grande MIGUEL CADALSO! Que alegria é participar nas mesmas provas do Miguel :)
Não estava nos meus planos ir a Abrantes este ano. Queria fechar o campeonato Endurance com os 100km do EstrelAçor, mas umas dores chatas numa perna não me deixaram preparar bem para a Estrela e, com a substituição do UTAX pelo Abrantes 100, pareceu-me uma boa opção. 

Quem me vai lendo por aqui sabe que este não é de todo o tipo de percurso que costumo procurar, mas na verdade há muito que este tipo de desafio me aliciava, principalmente depois de ler os relatos do Perneta sobre os Caminhos do Tejo ou do Rui Pinho, sobre a PT281. Sabia à partida que seria diferente de todas as provas de 3 dígitos que já fiz, outras preocupações, estratégia ou variáveis. Sabia que é uma prova muito "rolante", que iria permitir correr do inicio ao fim (eu sei que há quem faça as outras também sempre a correr, mas eu não consigo). É uma prova sem subidas ou descidas, sem caminhos técnicos, altitude ou condições meteorológicas extremas. Basicamente a única preocupação é a progressão o mais rápido possível por uns longuíssimos 100km e o natural impacto tremendo que isso tem no corpo.

Os 5 elementos do GDP que correram os 100km, aos quais se juntaram mais uns quantos nas restantes provas.
A partida foi dada à uma da manhã no centro de Abrantes. Uma noite impecável, com o terreno regado há menos de uma hora e temperatura perfeita. Depois de um pequeno périplo pela zona histórica de Abrantes e uma passagem pelo Castelo, que não conhecia, lá descemos a encosta da cidade e atravessámos a ponte para a margem sul do Tejo. Os 200 e poucos participantes lá entraram então num trilho engraçado, que se prolongou por cerca de 2km. Não me apercebi logo da solenidade do momento, mas este foi o único trilho que pisámos em mais de 50km! 

2400+ distribuídos por 100km. Desta vez não me peçam para fazer os riscquinhos vermelhos!
Podem estar a estranhar eu ter dito que a prova não tem subidas quando o desnível positivo é de 2400 metros e estas se podem ver no perfil acima. Mas tenham em conta que a maior amplitude foi de cento e poucos metros. A verdade é que, com algumas excepções, as subidas passavam e nem se davam por elas. Principalmente na primeira metade, até ao Pego, toda ela feita de noite. Foi aqui que começaram as novidades para mim. Uma noite perfeita, estradões muitas vezes de areia molhada, muito macios, e eu a correr a um ritmo perfeitamente confortável. Frequentemente dava por mim a aumentar inconscientemente o ritmo. Foi essa a minha principal preocupação durante os primeiros 52km, correr, mas nunca entrar em esforço, sempre consciente que tudo o que fizesse ali teria repercussões lá para o fim. 

Por falar em novidades, foi uma noite com uma grande estreia para mim! Pela primeira vez na vida tive uma crise grande de diarreia durante uma corrida! Hãn, aposto que estavam desertinhos para saber disto. Que coisa desconfortável! Tive que encostar à boxe 5 vezes, sempre que saía de um abastecimento. Comecei a ficar muito preocupado, primeiro porque nunca me tinha acontecido e não sabia como lidar com aquilo e depois porque tinha consciência que estava a desidratar, mas beber água deixava-me mal disposto. Já desesperado comecei a perguntar envergonhadamente se alguém tinha um Imodium (só me lembrava da publicidade deles: acabe com a diarreia antes que ela acabe consigo), até que finalmente o André Ferreira do Caracol me arranjou! Lá tomei aquilo e, milagre, a coisa foi estabilizando até que finalmente estava impecável! Salvaste-me a prova, André, obrigado!

Não volto a sair de casa sem isto!
A primeira metade da prova tem muito pouco que contar. Acho até que pela primeira vez não me consigo lembrar com exactidão do percurso! Na minha cabeça está tudo misturado, estradão atrás de estradão, mas consigo lembrar-me perfeitamente dos banquetes de casamen...perdão dos abastecimentos. Que. Exagero. Fez-me lembrar os abastecimento do Sicó, em 2015. Só para terem uma ideia, no primeiro, aos 9km, comi 4 croquetes e duas talhadas de melancia. Em todos havia enchidos de toda a espécie, sopa, melancia e sei lá mais o quê. Muito bom ambiente, muita gente a assistir e a dar apoio (os abastecimento eram em vilas) e num deles até havia uma banda de garagem de uns putos a tocarem a Yellow, de Coldplay! Como era uma prova rápida e tinha muitos abastecimentos, nunca demorávamos muito a passar de festa para festa e a verdade é que isso foi muito motivante. 

A prova estava a ser exactamente como eu pensava, uma progressão rápida vila atrás de vila, sempre por estradão, sempre a alternar um trote lento com caminhada quando o terreno inclinava um pouco mais. Cheguei à base de vida (52km), no Pego, com 6h10 de prova, o que dá um ritmo médio de cerca de 7'/km. Mesmo com a paragem em todos os abastecimentos acabei por conseguir fazer os 52km em ritmo de corrida e sentia-me bem, apesar de naturalmente já estar um pouco moído. Comi duas taças de caldo verde, troquei de t-shirt mas deixei as sapatilhas. Estava a estrear uma Saucony que consegui por 50% de desconto, que é a minha característica preferida no calçado, mas os pés estavam em bom estado. Pensei que tinha acertado outra vez (nunca tinha usado Saucony), mas não trocar foi uma opção errada. Acabei por perceber isso umas horas depois. 

Do Pego partia a prova de 50km, em comum com os 50km finais da prova grande. Esta é a foto do Miguel da partida.
Saí muito revigorado da Base de Vida. Demorei-me lá cerca de 15 minutos, o suficiente para o sol clarear um pouco e já não precisar do frontal. Parti cerca de meia hora antes da prova de 50km, o que também me deu ânimo. Tinha alguns amigos nessa prova e ser passado por eles e outros era uma boa distracção. Tinham-me dito que a segunda metade era mais difícil, o que se veio a revelar principalmente nos 25km finais, e a verdade é que a batalha estava prestes a começar.

Logo a seguir à Base de Vida: um trilho! Foto M.C.
Apesar do trilho da fotografia acima, os primeiros 25km desta segunda metade não foram muito diferentes dos outros 52, apesar de termos apanhado um ou outro trilho. O primeiro classificado dos 50km passou por mim aos 60 e poucos km, ia ele com 10km em 40 minutos! Logo a seguir, em 2º, passa o meu amigo Tiago Godinho, do Caracol Apressado. Se não conhecem o blog dele, façam por isso! Além de um atleta brutal escreve que se farta e aposto que esta prova dele vai ser uma boa história. Cumprimentei os dois, dei-lhes um incentivo e eles responderam de volta. Ritual que cumpri com TODOS os que iam passando por mim "força, boa prova, vais bem!!". Alguns respondiam de volta: "força também, coragem!", como o grande Rui Luz. Mas para surpresa minha comecei a reparar que a grande maioria não dizia nada! Confesso que aquilo me deixou um bocado incomodado. É raro estar inscrito na distancia menor e ainda mais que nesses casos as provas se cruzem, como nesta. Aconteceu no Sicó este ano ou na Mitic o ano passado, fiz questão de dar uma palavra a todos os da prova grande que ia ultrapassando. Epah, censurem-me à vontade, chamem-me o que quiserem, não quero saber disso pra nada. Para mim é um questão de respeito. 

De volta à margem Norte do Tejo. Lembro-me de estar a passar nesta ponte e pensar que aquele passeio estreito podia contar como trilho ahah Foto do M.C.
Foi precisamente depois de passarmos nesta ponte, aos 70 e poucos km, que o percurso começou a alterar. Entrámos para um vale apertado por onde passa um afluente do Tejo (desculpem, não consigo perceber como se chama) e andámos mesmo em cerca de 1km de um trilho difícil num sobe e desce pedras num sitio muito bonito, onde não faltaram travessias do rio, cordas ou corrida em levadas. Haveríamos de passar mais uns quilómetros em zonas destas até ao fim, sem dúvida as zonas mais interessantes do percurso.

Grande fotografia, Miguel!

M.C.

M.C.
Com a alteração do tipo de percurso e o acumular dos quilómetros, naturalmente o ritmo também baixou. Os trilhos davam uma motivação extra e sempre que podia metia um trote leve, já não dava para mais. Passei a olhar muito mais vezes para o relógio e os metros custavam a passar, mas a perspectiva de fazer um tempo bastante melhor do que esperava motivava-me. Pela primeira vez numa desta provas levei a informação de ritmo médio no relógio e desde o inicio que andava a fazer contas de cabeça para saber até onde podia ir para cumprir o meu objectivo. 

Nesta altura comecei a ter o acompanhamento da Virgínia, que estava a dar apoio ao marido Luís, nos 50km. Foi bom ter uma cara conhecida em todos os abastecimentos. Esses continuavam a ser um exagero de comida! Até ao fim ainda comi sopa em mais dois abastecimentos, muito bom! 

Com o Luís e uma taça de sopa na mão, num dos abastecimentos
Iniciei a contagem decrescente muito cedo, ainda deviam faltar uns 40km. Comecei a ficar ansioso com o ritmo que já não estava a conseguir manter, tive que dizer a mim mesmo várias vezes para não exagerar, que os momentos maus são apenas isso, momentos. Dali a nada conseguiria voltar a correr. Os metros foram passando e os naturais desconfortos foram crescendo, começando pelos pés. Há muito que os pés não eram um problema para mim, às vezes os 30 ou 40 euros que se gastam a mais numas sapatilhas compensam.... Também o calor começou a apertar o que aumentou ainda mais a urgência de acabar. Estava a entrar num lugar mau com toda esta ansiedade por isso foi uma ajuda enorme quando passei 15 ou 20 minutos da prova a conversar com um companheiro da Trofa (não fixei o teu nome, amigo, desculpa). É muito raro andar com alguém nas provas, mas sempre que o faço fico satisfeito porque realmente ajuda, os quilómetros passam sem darmos por isso e até nos esquecemos das dores. Deixei a companhia dele depois do ultimo abastecimento, a 9km do fim. 

M.C.
Neste último troço já cheirava a meta e, revigorado por mais um banquete que incluiu melancia, sentia-me bem e com força. Fiz os 9km finais praticamente sempre a correr, com os metros a passarem bem depressa no relógio. 

Entrei no estádio da cidade do desporto de Abrantes com 13h18. Muuuuito antes dos 15 horas mínimas que previa, o que deu um ritmo médio de 7'30''/km. A anos luz do que pensava que era capaz, o que me deixou nas nuvens!



Com o grande Hugo Água
Confesso: adorei a prova. Sempre achei que gostaria deste tipo de percurso e ainda fiquei com mais vontade de me meter numa aventura como os Caminhos do Tejo. Não é uma prova de trilhos nem de montanha, mas também não quer ser. É o que é: uma corrida de 100km, praticamente planos, onde lutamos desde o inicio com o nosso limite. A organização foi excelente, os abastecimentos nem vale a pena falar mais, mas tudo o resto esteve impecável, sem falhas. No fim ainda tomei um duche no que me pareceu o melhor chuveiro do mundo, nos balneários do estádio. 

Estou muito orgulhoso da minha prova, até o resultado foi anormal para mim. 31º em 200. Acabei completamente arrasado. Mais amassado do que em muitas provas de montanha! À noite estava com tantas dores que tive a fazer gelo nos joelhos e tornozelos e ainda tive que tomar um brufen porque estava ligeiramente febril. Foi uma tareia tremenda para o corpo e não fosse a nuvem de endorfinas que estou a navegar neste momento podia mesmo dizer que tinha sido um martírio! Com desnível ou não, com montanha ou não, com trilhos ou não, esta vai direitinha ali para aquela coluna do lado direito do blog que diz: "Hall of Fame - As Grandes"!

segunda-feira, 8 de outubro de 2018

II Freita Sky Marathon - Tão mais que uma prova...

Apetece-me escrever tudo sobre este fim de semana, mas estou há uma hora em frente ao computador e não sei por onde começar. 

Apetece-me escrever sobre o plano louco de ir acampar com mais 10 adultos e 14 crianças para o parque de campismo mais incrível que já vi, no Merujal, topo da Serra da Freita. Um bosque plantado no meio de uma encosta granítica, bem lá em cima, nos 900m. Sobre os jantares, literalmente, em cima do joelho ou dos dias tão preenchidos que parecia que tinham 36 horas. Sobre os  passeios pelos PRs, guiados pela criançada. Da carne do Nino da Freita ou das noites mais geladas que já senti, nas quais nem 4 sacos-cama e uma família amontoada chegavam para aquecer o nariz.

Queria falar daquele passeio de carro que demos. Uma caravana de 5 carros, a aproveitar a ultima hora de luz do dia, numa daquelas estradas que se vêm nos filmes e onde não se sabe o que é mais impressionante: a parede do lado direito ou o precipício do lado esquerdo. 

Também não queria deixar de vos falar sobre a Serra da Freita. A inacessível, a agreste, a inacreditável Freita. Ninguém me convence que assim que passamos Vale de Cambra não entramos num portal que vai dar a outro mundo, a prova disso é que passámos 3 dias sem rede no telemóvel. Não, aquilo não pode ser do nosso mundo. 

Depois houve a prova, no domingo. O ano passado foi sem dúvida alguma o percurso que mais me surpreendeu, dos meus preferidos de sempre. Para o conhecerem melhor, aconselho-vos a ler o que escrevi o ano passado, porque desta vez nem saberia por onde começar. 

O percurso, esse, era igualzinho. Queria falar-vos sobre aquele crescendo brutal de emoções, ou dificuldade, não sei bem. Da gestão possível de uma prova que sabemos à partida nos vai mastigar vivos. Da sempre surpreendente transição do fundo dos vales xistosos para os planaltos graníticos. Do frio na barriga quando se desce para a Mizarela, da sensação de esmagamento quando olhamos para trás e vemos a água a escorrer na encosta. Do desespero da descida do PR7 até à base da ultima subida, uma crista vertical que nos leva de volta aos 900m.  Nenhuma outra prova me faz adiar até tão tarde a sensação de missão cumprida, foi preciso chegar até aos 41 de 42km, 2800m subidos e quase 7, para finalmente respirar fundo e sentir que estava feito, e bem feito. Provavelmente das provas que me correram melhor até hoje. O culminar perfeito de um fim de semana perfeito, que empurrou para um cantinho qualquer joguito de futebol nessa tarde.

Este post fica só como introdução, um dia vou falar-vos sobre isso tudo. Ou então não, se calhar fica  lá do outro lado do Portal de Cambra, naquele mundo que não é o nosso, é o da Freita.












segunda-feira, 1 de outubro de 2018

1º Grande Trail de Alpiarça - Justificadamente GRANDE

Achava eu que alguém se tinha esticado um bocado ao acrescentar o sumptuoso adjectivo "Grande" ao titulo desta primeira edição do Trail de Alpiarça. Afinal de contas, era Alpiarça... Não há montanha, tal como não há em Almeirim (as terras são vizinhas, distam 7km), não há grandes paisagens, nem ribeiros para atravessar, não há caminhos técnicos nem nada dessas coisas que confiram "dureza extrema" à prova, como agora está na moda dizer-se. Achava eu arrogantemente que, na melhor das hipóteses, estávamos perante uma competente prova de aldeia. 

Mas isso foi até chegar ao perímetro da Barragem dos Patudos, onde estavam os primeiros de dezenas de voluntários a envergarem t-shirts vermelhas que vi durante todo o dia e em todo o lado, dentro e fora do percurso. Até ver a impressionante estrutura montada na meta, até perceber como funcionaram de maneira eficaz e rápida os transportes de atletas para o Casalinho, onde estava a partida (a cerca de 10km da chegada). Eficaz como a logística do almoço, bem servido e mesmo junto à meta, por cima dos balneários das piscinas municipais, que estavam ao nosso dispor. Achava que era só mais uma prova de estradão, até estar a correr em quilómetros e quilómetros de trilhos exemplarmente marcados e abertos de propósito para o evento.

Achava que "Grande" era de mais. Que um "Trail de Alpiarça" chegava. Mas isso foi até estar a voltar para casa, já bem a meio da tarde, satisfeito, de alma cheia. Lembrei-me daqueles que vi passar por mim durante o dia, de t-shirt vermelha, com olhar concentrado e preocupado. Aqueles que passaram horas e horas nos últimos meses a construir e depois olear a máquina bem afinada que foi aquele dia. Aqueles que deixaram sangue, suor e lágrimas nos eucaliptais e campos de cultivo, que puseram a organização deste evento lá em cima nas suas prioridades do dia a dia. Tudo para que os mais de 400 inscritos nesta primeira edição fossem, tal como eu, de alma cheia para casa. 

Foi quando me rendi: o 1º Trail de Alpiarça foi Grande, sem dúvida. Foi Grande porque não falhou um milímetro, porque aproveitou a 100% as potencialidades do terreno e não deixou uma única ponta solta do que podia controlar. Mas foi Grande principalmente porque teve Grandes pessoas por trás. A todos os meus parabéns!

Grandes!
Inscrevi-me no Grande Trail de Alpiarça porque me pareceu uma boa preparação para o Abrantes 100, que acontece daqui a 3 semanas. O terreno seria mais ou menos parecido e 30km pareciam-me uma boa distância para um treino longo. Mas é claro que isso de ir para uma prova treinar nunca resulta (pelo menos para mim) e nem sequer pensei em poupar-me, foi prego a fundo desde o início.


Apesar de preferir as ultra distâncias, é sem dúvida nestas distâncias curtas que sou mais competitivo e a verdade é que adoro a adrenalina de ir de faca nos dentes sem pensar em gestões e a controlar as posições à frente e atrás. 

Foi assim neste Trail de Alpiarça, desde o início que andei a trocar de posição com mais 3 atletas, com a perfeita consciência que se facilitasse minimamente já tinha alguém a morder-me os calcanhares. Acreditem quando vos digo que deixei tudo naqueles trilhos! 

No fim confesso que as 2h39 para os 29km com 900D+, uma média de 5'30''/km, me deixaram bastante orgulhoso, com a luta pelas posições a resultarem num 7º lugar da geral e um 3º lugar no escalão sénior! 

Sim, o meu primeiro pódio! ehehe 

Pódio Sénior
Se alguma vez vos perguntarem a definição de Parte-Pernas.
Claro que tenho consciência que isto é um pódio dos pequeninos, basta ver que o Luiz Mota, 2º classificado, chegou 20 minutos antes de mim e o impressionante Miguel Arsénio, sub23, 10 minutos antes dele! Mas, vá lá, deixem-me gozar o prato que isto não é (claramente) todos os dias :)