As minhas corridas na estrada

domingo, 26 de outubro de 2014

20km de Almeirim - A correr em casa

9:59 - Do meu lado direito tenho a escola primária onde estudei, do esquerdo a biblioteca que vi ser construída da janela do apartamento onde passei os primeiros 10 anos da minha vida. À minha volta estão dezenas de caras conhecidas. Amigos da corrida, conhecidos... Lá à frente, o pórtico da meta ergue-se pela 28º vez em Almeirim. 

10:00 - Partida! 



Hoje corri pela 8ª vez os 20km de Almeirim. Sem o nervosismo e a ansiedade de outros anos, lá saí de casa uma hora antes da partida para percorrer a pé os 500m que me separam da meta (que luxo!). Hoje era dia de festa! Aliás, como é sempre em Almeirim neste dia. É o maior evento da cidade e acreditem que cada Almeirinense tem o maior orgulho em ver aquelas centenas de pessoas que todos os anos se deslocam à nossa terra. Eu sou um dos orgulhosos, sem dúvida. Se há coisa que funciona bem em Almeirim é esta corrida, e isso nota-se pelo prestigio que alcançou nas 28 edições. Sem as estrelas de há uns anos, quando havia dinheiro para prémios monetários, mas sempre com uma participação muito interessante. Este ano foram 938 a cortar a meta nos 20km e 1027 nos 5km!


10:05 - Este ano, pela primeira vez, tentei posicionar-me mais junto aos atletas da frente antes da partida. A ideia era evitar a confusão nos primeiros metros e até resultou. Não demorou muito até meter o ritmo que me levou ao longo de toda a prova. 


A edição deste ano serviu para apresentar a novíssima equipa de trail de Almeirim, uma secção da Associação 20km de Almeirim, que organiza esta corrida. Às 9:30 encontrei-me com os meus colegas de equipa, todos equipados a rigor com as novas camisolas azuis. Estou entusiasmado com este novo projecto! Não que vá sair daqui grandes estrelas e troféus colectivos, mas desde que corro nunca tinha estado numa equipa. O atletismo é um desporto individual, mas fazê-lo em equipa tem muito mais piada!

Aqui estão eles, apesar de faltarem aqui ainda quatro!
10:25 - Os primeiros 5km dos 20 são os melhores. Damos a volta completa à cidade. Passo pela minha casa, pelas piscinas onde treinei durante anos, pelo jardim da zona norte onde passo tantas horas, a zona dos restaurantes da Sopa da Pedra onde jantei centenas de vezes com os meus amigos, a praça de touros onde.....onde....não, não tenho memorias da praça de touros, nunca lá entrei! Ficariam surpreendidos com a quantidade de Ribatejanos que não acham piada à tourada, apesar do estereotipo. Vou num bom ritmo, exactamente o que tinha preconizado para esta prova. Nas pernas ainda transporto os 42km da Lousã da semana passada, mas não dei muito por eles durante a semana e tinha a esperança que não se fizessem sentir durante a prova.


Uma parte do Jardim da Zona Norte, com as piscinas lá ao fundo. Este também vi ser construído. Sim, estou velho :\
Desde a maratona do Luxemburgo, em Junho, que não fazia uma prova de estrada. Pelo contrário, tenho feito muito trail. Muito já se escreveu / falou sobre as diferenças e semelhanças entre o trail e a estrada. Para mim é muito simples - são dois desportos completamente diferentes. É como querer comparar o rugby com o futebol americano, à primeira vista até parecem parecidos, mas não têm nada a ver. Com o trail/estrada é igual, a única semelhança é que são ambos feitos a pé. Nem vou entrar por comparações qualitativas, porque é completamente absurdo, deixo isso para quem tem tempo de ter discussões estéreis. Eu cá adoro os dois desportos, cada um à sua maneira. Não sinto necessidade de enveredar apenas por um, porque na verdade ambos me dão prazer! 

Dois desportos - dois amores.
Sim, é o Marco Paulo, escusam de agradecer.
10:30 - No sétimo quilómetro dá-se inicio a uma nova fase da prova, a viagem de ida e volta a Alpiarça. À minha frente a longa e plana recta da Gouxa. Poucas sombras, poucas pessoas, e uma recta que nunca mais acaba. Lembro-me de nas primeiras participações, há 8 ou 9 anos, pensar "pronto, agora é que começa a prova!"

A ida a Alpiarça é uma necessidade. Por um lado, Almeirim não tem área suficiente para comportar uma boa prova de 20km completamente urbanos, por outro é a melhor maneira de prolongar o circuito plano, com o bónus de corrermos cerca de 2km junto à barragem dos Patudos. São cerca de 10km muito mais monótonos que os primeiros 5 e últimos 3, mas têm que se feitos.

Barragem dos Patudos, em Alpiarça
10:50 - Km 12, a chegada à barragem. Como sempre, neste sitio está muita gente a ver. Os 20km são de Almeirim, mas Alpiarça também se pode orgulhar deles! Desta vez tenho uma comitiva de apoio especial, os meus pais estavam lá a fazer uma surpresa :) Nesta altura começo a sentir-me a ir abaixo. Passei aos 10km no minuto que queria, mas sentia que estava a chegar ao limite, dificilmente iria aguentar o ritmo até ao fim.

O ponto de retorno na barragem é sempre um ponto alto para mim. É naqueles 2km, para a frente ou para trás, que vejo e incentivo os meus amigos todos que passam em sentido contrário. Ele é "força!", "vamos!!", "tá quase!!", "vais forte", e high fives a toda a hora! Até nos esquecemos das subidas ligeiras que vamos fazendo. Tantos almeirinenses que correram hoje, que ORGULHO! Foram 65 a cortar a meta nos 20km, excelente!!

11:00 - A passagem ao km 15 coincidiu com o 3º abastecimento. Desde o primeiro km que corro com uma sensação desconfortável, vulgo "à rasquinha pra mijar", mas está MUITO calor e forço-me a beber mais uns goles de água. Nesta fase da corrida voltei a sentir-me bem. Tem sido assim, 1km bem, 1km mal. Mas quando estou bem, é mesmo bem! 

Uma das diferenças que acho muito significativa do trail para a estrada é que nos trilhos dificilmente atingimos o runners high (desculpem o estrangeirismo, mas "moca de corredor" soa mal). Sabem o que é de certeza. Aquele momento, já a meio de uma grande corrida, em que parece que não estamos a fazer o mínimo esforço a correr. As pernas mexem-se quase automaticamente, sentimos um arrepio na nuca e só nos apetece correr mais depressa, mais longe! Que saudades que eu tinha disto!

Runners high. Mais ou menos isto :)
11:10 - km 17, faltam 3. O runners high que senti à pouco já desapareceu e estou a ressacar com força. O ritmo baixou 20s/km. Já vou num grande sofrimento, tudo me incomoda! O calor, a sede, a bexiga cheia, a barriga que vai mal disposta e a subida da Compal. Uuuuii a subida da Compal!!

É difícil explicar a quem não é de Almeirim o que é a subida da Compal. Analiticamente é um troço de estrada com uns 200m que sobe uns estonteantes 8 ou 9 metros em altura. Ou seja, é pouco mais que uma lomba. Mas para os Almeirinenses é o Cabo das Tormentas! Qual Diana, qual KM Vertical, qual subida ao Trevim, aquilo é pior que subir o Monte Branco! "Correr os 20km é na boa, o pior é a subida da Compal!", "epah tem cuidado, podes ir muito bem, mas vais ter que passar na subida da Compal!", "eish, tás todo partido, até parece que fizeste a subida da Compal!". Ok, é verdade, Almeirim tem dois mitos urbanos - o Frade da Sopa da Pedra e a Subida da Compal! 

Aqui podem ver o Killian Jornet a treinar para a subida da Compal.
11:15 - De volta à cidade! Faltam pouco mais de 2km, ainda não recuperei o fôlego da subida, mas forço-me a aumentar o ritmo e ir um pouco mais depressa. É só fazer a rua Condessa da Junqueira, passar pela Pani Tejo, por casa dos meus avós, pelo pavilhão, curvar à esquerda e correr os 300m da recta da meta!

A recta da meta é o ponto alto em qualquer corrida, mas para mim atinge o auge nesta. São centenas as pessoas que assistem e aplaudem. Vou com tanta atenção a procurar caras conhecidas que até me esqueço que vou em esforço! A 200m lá estava a Sara com a Maria Amélia ao colo "é o pai filha, é o paiiiii!!"

11:21 - Chegada!

Apesar de consciente que os 42km da semana passada poderiam pesar na pernas e de já não treinar velocidade há muito tempo, parti com o objectivo de bater o meu record pessoal nos 20km. Objectivo cumprido, arranquei 3 minutos ao tempo do ano passado e terminei em 1h21 para os 20.160km, o que dá uma cadencia de 4.03min/km, muito bom para mim. Mas o melhor de tudo foi correr em casa, com os amigos e a família. Não corri nem de perto todas as edições da prova, mas espero alinhar na partida desta corrida até as pernas me permitirem. Parabéns Almeirim!

Olha que engraçado, o prémio de finisher é igual ao da Lousã!

domingo, 19 de outubro de 2014

Trail Serra da Lousã (42km) - Fui eu e o trilho...

... e mais uma data de gente que teve a mesma ideia!

Costuma dizer-se que não se deve voltar onde já se foi feliz. Ora bem, andei à procura no Google e não vi nada sobre voltar onde não se foi feliz. Como a minha estreia no trail há dois anos, precisamente nesta prova, não correu lá muito bem, decidi dar uma segunda oportunidade à Serra da Lousã. Este ano ligeiramente aumentada em relação a 2012 (de 30 para 42km), voltei a participar na série AXtrail, organizado pela GoOutdoor e mergulhar mais uma vez nas aldeias do Xisto.

Uma tipica aldeia do xisto
Como sempre, aproveitei a oportunidade para passar um fim de semana em família. Na sexta feira lá fomos direitos à Serra da Lousã, mais precisamente a Gondramaz, que segundo o Google Maps ficava a 20km de Castanheira de Pera, base do AXtrail. Depois de levantado o dorsal sem nenhum problema, lá seguimos para os tais 20km até Gondramaz para nos encontrarmos com uns amigos que também iam participar na corrida. Foi então que descobri que o Google Maps também gosta de trail, já que nos mandou por estradas de terra a atravessar a serra! A meio daquele raid TT, liga-nos a senhora da casa. Quando lhe disse onde estávamos responde ela muito admirada "mas estão de jipe??". Não..não estávamos... Bem, já que é para o mato, que vá a família toda :) Já agora, aproveito para recomendar a "Casinha do México" a quem queria visitar a Serra da Lousã, bons preços, pessoas simpáticas e uma casa muito confortável bem no coração da Serra. Ah, e sem um tracinho de rede de telemovel, seja de que rede for! Só não pensem é em ir quando for o Trail dos Abutres, por EU quero ir para lá! eheh

De nada, obrigado nós :)
No dia seguinte lá segui com o meu amigo Francisco que se ia estrear na distancia. Desta vez por estradas civilizadas, mas não menos sinuosas, lá chegámos a Castanheira bem a tempo dele levantar o dorsal e nos posicionarmos no pórtico. A meio da viagem apercebo-me que me esqueci do relógio em casa! Pânico! Voltar já pra casa, não posso correr sem relógio! Não, não há tempo, temos que seguir! E agora meu deus, o que hei-de fazer, já não posso correr, a minha vida acabou!!

Sem mais comentários
A partida acabou por ser adiada quase meia hora, por causa da lenta distribuição de dorsais. Pode considerar-se uma falha da organização, mas a verdade é que eram quase 500 atletas para o TSL e 300 para o mini trail. Claro que isto tudo podia ter sido previsto antes, mas enfim, são pormenores, nada de importante.

Às 10 da manhã, já depois de me ter encontrado com outros 3 colegas almeirinenses que tinham vindo no próprio dia, lá foi dada a partida. O primeiro quilometro, até sairmos de Castanheira e mergulhar na floresta, foi feito em estradas largas e estradões, uma boa maneira de dispersar o pessoal antes do afunilamento nos singles tracks, e a estratégia resultou, nunca houve grandes constrangimentos pelo menos na zona onde eu seguia. Não demorou muito até finalmente entrarmos na serra e começar a subir...bem, subir talvez seja um eufemismo, escalar é uma melhor palavra!

Os números deste trail assustam e apanham desprevenidos os mais distraídos. Seriam 42km com 2800d+, mas mais impressionante que isso era constatar que os últimos 12km seriam quase sempre a descer. Ou seja, teríamos que subir os tais 2800m em cerca de 30km. 


Já aprendi a desconfiar muito dos gráficos de altimetria, mas números são números, e 2800d+ em 30km metem respeito. 

A primeira grande subida levou-nos logo literalmente às nuvens, nos 1000m de altitude. Foram cerca de 6km sempre a escalar que serviram para dispersar o pessoal e acalmar os habituais ultra confiantes, que nos primeiros quilometros dos trails fartam-se de empurrar e ultrapassar pessoal nos trilhos estreitos e subidas não muito inclinadas. Nada como um bom declive para por tudo no lugar :)

Já perto do final da subida, entrámos no meio das nuvens. A temperatura baixou, o vento aumentou e a chuva intensificou-se. As bocas e risadas omnipresentes no inicio da corrida de repente pararam por completo. Os quilómetros seguintes foram percorridos num planalto lá bem em cima. Cerca de 4km bastante corriveis em estradões e trilhos rápidos. A certa altura, ia eu a correr confortavelmente, quando olho para o lado e vejo o Armando Teixeira! Caraças, não tenho relógio, mas devo ir a correr a 3 ao km, estou super forte!! Ou então o Armando veio só passear... ok, vamos antes pela segunda alternativa :) Cumprimentei a estrela, que se lembrou de mim do km vertical, e segui a meu ritmo. Mais uma vez achei-o impecável. Como não podia deixar de ser, toda a gente se metia com ele, mas respondia sempre com um sorriso.

A descida seguinte, como podem ver no gráfico, parece um autentico precipício. A melhor maneira que tenho para vos descrever aquela descida é dizer-vos que era uma cascata de lama no meio de árvores e pedras, e nós tínhamos de alguma maneira que chegar lá abaixo vivos! Ok, era muito perigoso, e quase inevitável cair (eu fui ao chão duas ou três vezes), mas não há duvida que era muito, muito divertido! Mais uma vez, os bastões foram os meus melhores amigos. Usei-os para controlar a descida, já que era o único ponto fixo que eu arranjava. Cada vez estou mais convencido que os bastões são uma parte essencial no trail. Não há que ter vergonha, não estamos a fazer batota, a verdade é que nos ajudam a subir, a descer, e são tão leves que não atrapalham nada quando precisamos de correr.

Os quilómetros que se seguiram até ao primeiro abastecimento, na aldeia do Talasnal, foram daqueles que nos lembram porque é que fazemos isto. Single tracks no meio da floresta, cobertos de caruma dos pinheiros que os tornavam macios, ora a subir ora a descer, sempre nas encostas da montanha, ora dum lado ora do outro do vale.  Quase sempre a correr a bom ritmo e com um sorriso nos lábios, foi assim que os percorri. De vez em quando abrandava e olhava para o lado, para ver a montanha. A Serra da Lousã é fantástica, não há duvida. Não me lembro de outra serra com tanta vegetação como aquela. As cascatas eram omnipresentes, várias vezes passámos por ribeiros que nos refrescavam os pés e pediam uma pequena paragem para molhar a cara e beber água gelada directamente da fonte. Seguia num pequeno grupo, todos à mesma velocidade, sem stresses de ultrapassagens, sem grandes conversas. Todos estávamos a ter um prazer brutal em correr ali, era óbvio. Lembro-me de ter pensado "pronto, já valeu a pena!".

O primeiro abastecimento, aos 14km, estava no Talasnal, uma aldeia do xisto.

Talasnal
Quanto aos abastecimentos, é a única critica que tenho a apontar à organização. Temos que nos lembrar que estes eram em comum com o pessoal dos 100km, e a verdade é que eram bastante fracos. Tinham o básico, é verdade, mas achei pouco. Principalmente porque lembro-me de há dois anos ter achado aquilo um autentico buffet de casamento. Ainda por cima, este estava situado numa casa pequena na aldeia. Estava tanta gente e tão abafado que perdi logo a vontade de me aproximar da mesa. Acabei por sair sem comer nada e já na rua comi um gel. Não me preocupou muito porque "só" tinha 42km pela frente, mas se estivesse na ultra tinha ficado bem chateado com aquilo!

Logo no quilómetro a seguir ao abastecimento, numa descida perigosa com muita pedra molhada, vi um grupo de 4 ou 5 pessoas e um deles sentado. Percebi logo que se tinha aleijado. Quase instantaneamente parece que perdi a concentração e também eu caí no meio das pedras! Não me aleijei nada de especial, mas fez-me lembrar que é preciso irmos sempre focados e nunca facilitar, é muito fácil termos acidentes sérios. O colega que estava sentado tinha feito um corte profundo na mão, estava uma poça de sangue no chão. Estive lá junto a ele alguns minutos. Já tinham chamado ajuda, e felizmente estávamos perto do abastecimento. Acabei por seguir já que estava a arrefecer muito. Nunca tinha visto tanta gente a ser forçada a desistir como nesta corrida. Vi várias pessoas com feridas em sangue, outras com sacos de gelo no corpo, outras vezes passaram por mim bombeiros para socorrer algum colega. 

O percurso entre o 1º e 2º abastecimento (10km) foi muito parecido com os quilómetros que antecederam o Talasnal, muito divertido, portanto. A certa altura passamos por uma levada com cerca de 1km. Do lado direito um canal que transportava água, do esquerdo um respeitável precipício!

Fotografia tirada da net. Aqui tem uma guarda de protecção, mas a maior parte da levada não tem nada.
Na fotografia a levada está vazia, mas como tem chovido muito nos últimos dias, ontem estava cheia, literalmente a transbordar! Várias vezes andámos com os pés dentro de água que transbordava para fora. Era um caminho bastante perigoso, mas foi irresistível percorre-lo a correr! 

Logo depois da levada começou a segunda grande subida. Como não podia deixar de ser, foi muito violenta. Lembrem-se que tínhamos 2800m d+ para escalar, distribuídos basicamente por duas grandes subidas. É claro que não iam facilitar.

O segundo abastecimento estava a meio desta segunda grande subida. A um km de lá chegarmos, entramos na aldeia de Cerdeira. Na base da encosta vejo 4 ou 5 pessoas sentadas numa fonte, soube mais tarde que estavam à espera de transporte da organização, iam desistir. À nossa frente estava uma escadaria com uns bons 400m! Como os degraus são duros! Fez-me logo pensar noutra prova ali para o meio do Atlântico, vocês sabem do que estou a falar...

Cerdeira. A escadaria subia a encosta toda, a serpentear no meio das casas.
Entrei no abastecimento e fiquei com a mesma sensação do primeiro. Pequeno de mais para tanta gente, além de mais uma vez estarem muito pouco apetrechados! Estavam lá também vários atletas da ultra, sentados e com ar acabado. Ouvi alguns deles a protestar por não haver comida quente, iam com mais de 70km nas pernas. Acho que a parte dos abastecimento é definitivamente a rever pela organização.

Estávamos no km 24, faltavam 6 para chegar aos 30, onde acabariam as subidas. Seguia-se a subida ao Trevim, o ponto mais alto da serra com 1200m de altitude. Foi definitivamente a secção mais dura da prova, com subidas daquelas em que até assusta quando olhamos para cima, ainda por cima quanto mais subíamos mais o tempo piorava, o nevoeiro era cerrado, o vento fortíssimo e a temperatura estava pelo menos 10 graus abaixo do que tínhamos apanhado lá em baixo. 

Trevim visto (ainda mais) de cima.
É nestas subidas pura e duras, pouco técnicas, que os bastões fazem valer mais o seu valor. Principalmente porque ajudam na postura, subimos mais direitos o que poupa muito as costas. Depois tem outra coisa boa, se formos concentrados neles conseguimos marcar o ritmo da subida e ir naquele passo constante até lá acima. Claro que nada substitui um bom treino, e nesse aspecto tenho que voltar a referir o milagre do reforço muscular. Desde que falei aqui dele há uns meses que faço pelo menos 2 vezes por semana, sempre em casa. A evolução tem sido brutal, mesmo a nível de massa muscular. Eu sei que é chato, mas vale mesmo MUITO a pena, acreditem em mim!

Chegado ao ponto mais alto, e depois de ultrapassar alguns colegas, chegou finalmente a grande descida até à meta. Os primeiros dois quilómetros foram num single track aberto na encosta, espetacular para correr, o que aumentou brutalmente a adrenalina. Estava a adorar cada metro daquela descida! Aliás, daquela prova!

Estava quase a acabar este segmento e chegar ao 3º e ultimo abastecimento quando recebo uma sms da Sara: "o Francisco vai desistir". Parei imediatamente e liguei-lhe, queria dizer-lhe que o mais difícil era até aos 30km, que depois era a descer e nem era violento! Infelizmente a Sara contou-me que ele estava a sofrer muito, que já tinha vomitado duas vezes e que tinha chegado à conclusão que simplesmente não dava para continuar. Estava na base da escadaria de Cerdeira, no km 22. Eu sei como custou ao Francisco desistir, como custa a qualquer um. Sei que antecipou esta corrida durante quase 3 meses, e treinou todos os dias com ela em mente. Enquanto corria pensei várias vezes em como ele estaria a gostar da prova, já que aquilo era exactamente o que ele me dizia que gostava no trail! Por isso, se há pessoa a quem deve ter custado horrores desistir foi a ele. Mas quando a Sara me disse do estado dele, percebi imediatamente que ele tinha tomado a melhor decisão. É importantíssimo reconhecer os nossos limites, para mim não há nada de honrado em passar horas e horas em sofrimento profundo só porque se meteu na cabeça que tem que acabar a prova. A decisão de desistir é muito difícil de tomar, mas não é de forma algum motivo de vergonha! Vergonha é nunca sequer tentar, e muito mais difícil do que decidir desistir é sair do sofá e trabalhar pelos nossos objectivos! O Francisco desistiu, mas vai-se levantar, treinar mais e melhor e enfrentar um novo objectivo! Nem que seja daqui a um ano, mas vai voltar a enfrentar uma prova destas! Agora, quem anda horas no limite e acaba por ceder, porque o corpo humano tem limites quer queiram quer não, muito facilmente cria traumas muito difíceis de ultrapassar. Saibam ouvir o vosso corpo, é suposto ser divertido, não é nenhum luta pelas nossas vidas!

Foi a pensar na desistência do Francisco, e agora com menos alegria, que percorri os metros até ao ultimo abastecimento. Cheguei lá sempre a correr a bom ritmo e não me sentia nada cansado. Pensei em nem sequer parar no abastecimento, mas o bom senso levou-me a parar um pouco. Mais uma vez era pobre, acabei por comer pouco, mas estive ali 5 ou 6 minutos a descansar até voltar a atacar os trilhos. Faltavam 10km, liguei à Sara e disse-lhe que se não houvesse surpresas demoraria hora e meia a chegar à meta.

Infelizmente, estes últimos 10km foram uma espécie de anti-climax depois da prova brutal que tinha sido até ali. Pareceram-me um bocado para encher, sempre por estradas de alcatrão, estradões e poucos trilhos. Sentia-me bem e fresco, fiz os 10km praticamente sempre a correr, e a meta estava já ali para ser cortada, não sem antes passarmos por um riacho com água por cima do joelho. Foi bom para tirar a sujidade toda que tinha nas pernas e limpar as sapatilhas, se é para cortar a meta, que seja com categoria! :)

Ok, pelos vistos não passei tempo suficiente dentro de água.
Cheguei à meta menos de uma hora depois. Já lá estava o Francisco com a família, a Sara e a Maria Amélia, como sempre. Demorei 6h34m a percorrer o percurso, não faço ideia da classificação, mas para mim foi o meu melhor trail até agora. Acho que geri bem o esforço desde o inicio, consegui correr sempre que quis e não me fui abaixo nas subidas. Fiquei muito contente com a minha corrida, mas fiquei com um amargo de boca quando soube que além do Francisco outros amigos meus tinham desistido. Aliás, ainda não sei quantos foram, mas pelos vistos houve mesmo muita gente a desistir nas duas provas! Para os meus companheiros de armas que desistiram, não se preocupem, a Serra estará lá para o ano e vamos voltar todos!

Aqui com o meu prémio de finisher. Ah, e com um chapéu que a organização me deu por ter concluído a prova :)
Quanto à organização, sinceramente aparte dos abastecimento não tenho muito para dizer. Todo o processo administrativo correu bem, o percurso estava impecavelmente sinalizado e havia bastante assistência durante toda a prova. No entanto, a minha prova era de 42km. Se as coisas funcionam neste regime para uma prova "curta", para uma ultra de 100km tem que ser muito diferente. Já li muitas criticas de atletas do ultra, inclusivamente de amigos meus, e apoio completamente o que dizem. Desde a falta de comida quente, a abastecimentos que não estavam na distancia certa até elementos da organização que deram indicações erradas de distancia até pontos do percurso. A UTAX é uma prova de referencia no calendário nacional, mas com a quantidade de oferta que há se não limam estas arestas arriscam-se a cair na vulgaridade. 

Em resumo, foi um fim de semana muitíssimo bem passado com o Francisco e a família, uma prova que me correu na perfeição, paisagens magnificas e trilhos super divertidos. Dificilmente posso pedir mais! Estou cada vez mais apanhado pelos trilhos e só penso em mais e mais objectivos! Que venham agora os miticos 20km de Almeirim e, daqui a um mês, os 80km do Arrábida Ultra Trail!


terça-feira, 14 de outubro de 2014

20km de Almeirim. Uma cidade = uma corrida

Mais do que uma prova de atletismo, os 20km de Almeirim são uma parte viva da minha cidade. Organizado por uma associação com o mesmo nome, vai este ano para a 28º edição, destacando-se de longe como a corrida de 20km mais antiga em Portugal.


Podia falar-vos do percurso super plano, da participação popular, das ruas largas ou da excelente e muito batida organização, mas os 20km de Almeirim são muito mais que o somatório disso. É algo difícil de explicar a quem não é de cá, mas esta corrida confunde-se com a própria cidade, como se as ruas tivessem sido projectadas a pensar naquelas centenas de atletas que anualmente nos visitam. Domingo, dia 26 de Outubro  às 10 da manhã realiza-se a 28º edição (sim, lerem bem, vigésima oitava!) da prova. 


A vocês, que vêm de fora, convido-vos a experimentar este verdadeiro clássico da corrida em Portugal. Garanto-vos que serão muitissimo bem recebidos e no fim ainda podem experimentar a nossa Sopa da Pedra e uma caralhota, oferecidas a todos os participantes. Aos que já cá vieram, sei que não preciso dizer grande coisa quanto à excelência da prova, de certeza não ficaram arrependidos. A todos, terei todo o gosto em vos receber na minha terra! Eu sei que há dezenas de provas todos os fins de semana, mas dificilmente encontrarão alguma com mais carisma que esta. Ah, e já agora com esta excelente relação preço/qualidade. Vou tentar ser subtil: INSCREVAM-SE JÁ!!!! :)

Quanto a mim, vai ser a minha oitava participação. Lá vou estar mais uma vez em frente à minha antiga escola primária e à biblioteca que vi a ser construída, desta vez sem a ansiedade de outros anos, mas sempre com a alegria extrema de correr na terra onde vivo há 31 anos! Infelizmente este ano não vou poder lutar para o meu record pessoal, já que uma semana antes (já no próximo sábado)  vou estar noutras paragens que decerto darão origem a um certo empeno geral...



Também esta prova é especial para mim, já que foi lá, há dois anos, que me estreei no trail. Na altura não fazia a mínima ideia o que era correr em trilhos. Lá fui com o João, meu companheiro de treinos para a maratona, com as minhas sapatilhas de estrada e uma garrafa de água na mão eheh "São só 30km", pensámos nós "é um treininho longo, é na boa!" ahaha certo.. Apanhámos uma tareia brutal, num percurso super técnico e ainda por cima choveu o tempo todo! Sem qualquer treino especifico, tive duas semana amassado e diverti-me pouco porque simplesmente não tive pernas para a prova. Agora, com uma mentalidade e preparação completamente diferentes, quero lá voltar e desfrutar daqueles magníficos trilhos, da Serra da Lousã e das Aldeias do Xisto. 

domingo, 5 de outubro de 2014

KM Vertical - Em caso de dúvida, é pra subir!

Ora bem.. 300km de carro para cada lado, pagar inscrição, noite num hotel em Seia, refeições, etc, para correr 3.7km e subir 1000m na vertical. 

Claro! Porque não?!


Este nosso vicio leva-nos a fazer coisas estranhas. Por exemplo, acho que ainda está para surgir o comentário a um trail que não inclua "eishh, aquela subida foi violentíssima, matou-me!!", no entanto, que atire a primeira pedra quem ao passar por uma qualquer montanha não pense "epah quem me dera sair do carro e subir aquilo tudo de uma assentada!". Para quem não padece do nosso mal soa ridículo, eu sei que sim! Mas há coisas mais fortes que nós, como a Serra da Estrela! Está certo, não é preciso ir longe para encontrar picos que envergonham o nosso, mas em Portugal Continental é o mais alto! Qual de nós não fez as famosas viagens de fim de semana com os pais à Serra? Fazer sku, ver os cãezinhos, moldar pseudo-bonecos de neve e chegar ao carro com as calças de ganga todas molhadas. Todos nos lembramos daquela escalada infinita no banco de trás do carro dos nossos pais, com uma montanha imponente do lado direito e um precipício do lado esquerdo, as varolas amarelas e pretas e o desejar a todos os santos que haja neve lá em cima. Admitam ou não, a Estrela é mítica e faz parte da nossa memória colectiva. Agora propõem-me um assalto à Torre numa escalada épica a correr? 


Com organização de um ícone do trail nacional, Armando Teixeira, teve lugar este domingo a edição zero do quilómetro vertical na Serra da Estrela. A proposta era vencer um desnível positivo de 1000m numa extensão de 3.7km. Para os poucos que estão a ler isto e não estão dentro do assunto, é mais ou menos o equivalente a subir de uma vez 300 pisos de um prédio. Sim, pela escada... Feitas as contas, enfrentaríamos uma rampa com cerca de 30% de inclinação. Os números assustam, é verdade, e foram estes números que me aguçaram a curiosidade. No entanto, depois de vencida a rampa, cheguei à conclusão que há mais no km vertical do que números. Pelo menos neste houve.

Depois de uma noite na excelente Quinta do Crestelo, em Seia, às 9:30 lá estávamos os 3 em Alvoco da Serra prontos para a partida. Já agora, para mim, que incluo sempre um programa familiar nas corridas que vou fazendo, é ouro sobre azul quando a organização tem alguma espécie de acordo com alojamento perto da meta. É verdade que muitas têm, mas raramente valem a pena. Não foi este o caso, a noite no hotel passou de uns impraticaveis 48 para 30€! De certeza que o meu caso não é único e acho que este é um aspecto que as organizações devem cada vez mais ter em atenção.

Bem, mas voltando à prova, às 9:30 lá estávamos para nos encontrarmos com mais dois Almeirinenses e os outros 76 atletas. No briefing curto, o muito simpático Armando Teixeira informou-nos que antes de iniciarmos a prova percorreríamos cerca de 1km numa partida simbólica, até à base da parede. Falou-nos ainda um pouco do percurso e das marcações. Retive a seguinte frase: "o percurso está marcado com setas e algumas fitas. Em caso de dúvida... é pra subir!" :)

Deixa lá ouvir o gajo.
Percorridos os 1000m, chegámos ao que ele chamou Jardim do Alvoco. Aqui começaram as novidades para mim. Ao contrário da partida tradicional, esta foi dada dois a dois, com cerca de 30s de intervalo. Neste tipo de prova curta, pareceu-me excelente ideia. Apesar de sermos poucos, aposto que os primeiros metros seriam todos em fila indiana. Desta maneira fomos sempre com alguém no horizonte, mas sem nunca causar constrangimentos. 


Jardim do Alvoco, Uma pequena clareira no sopé da montanha.
Se no trail ainda sou um novato, neste tipo de prova estava absolutamente a zero. Nos trilhos, o instinto diz-me para me poupar nas subidas. Ok, mas aqui vou poupar-me para quê? Já o equipamento, no outro dia fiz aqui uma lista extensa do que uso. Mas só vou correr 3.7km, será que é mesmo preciso aquela tralha toda?? E o tempo que vou demorar? A minha táctica é ir ver a edição anterior, ver o tempo que fizeram no meio da tabela, e assumir que não vou ficar muito longe disso. Normalmente resulta! Mas....estávamos na edição zero! Era como eu, estava a zero! Bem, feitos os cálculos mentais e ponderado o factor cagaço, decidi levar a mochila de hidratação com 1l de água e os bastões. Quanto à táctica decidi ir percebendo o que as pernas me diziam e improvisar pelo caminho. O tempo para chegar lá acima? Oh, logo se vê!

Outra novidade, em vez das habituais marcações km a km, esta era pelo desnível positivo! 
O Armando avisou-nos que os primeiros 900m seriam enganadores, que a verdadeira parede surgiria a seguir, com 2.8km e 850d+. Decidi seguir o conselho dele e não abusar nestes primeiros 900m. Ok, decidi isto antes da partida! Assim que chega a minha vez de partir o "Espirito dos 10km" (aquele que nos empurra para um 1º km de nivel Kenyano nas provas de 10km de estrada), há muito desaparecido, reaparece e desato a saltitar de rocha em rocha por ali acima! 

Tumba tumba tumba, eia caraças, pareço o Killian, estou imparável!! Tumba tumba tumba, mais um saltareco, alça a perna, mais dois passos ligeiros e..... elaaaaahhhhh - pulsação a mil, pulmões a saltarem pela boca, respiração ofegante! Ui, o que vale é que já devo ir a meio! Claro.. a meio dos primeiros 400m.... Rapidamente deixei de me armar em parvo e adoptei um ritmo confortável e constante. Demorei algum tempo a recuperar o fôlego. É verdade que comecei ambicioso de mais, mas acho que mesmo a começar devagar demoraria algum tempo até encontrar o meu ritmo. Afinal de contas, começamos a trepar completamente a seco!

Quando cheguei aos 900m já me estava a sentir bem, mas a prova só começaria ali. Nesse ponto, no meio da encosta, estavam umas 30 pessoas da organização, bombeiros, caminhantes, escuteiros, etc, que puxavam por nós. Os gritos acordaram o Espírito dos 10km, mas eu rapidamente amansei-o. Foi nesta altura que afinei a minha simples "táctica" - passo confortável e constante. O importante era não parar ou abrandar. Primeiro porque quebraria o ritmo, e depois porque há medida que subíamos, o ar ficava cada vez mais frio, e transpirado como estava arrefeceria muito depressa.

Ainda consegui tirar umas fotos. Aqui foi pouco depois dos 900m.
Os 2.8km, ou melhor, os 800m d+ seguintes, infelizmente não têm grande história. As rampas eram enormes e cada uma mais empinada que a anterior. Uma espécie de Diana em esteróides. Os músculos andavam perto da combustão, estava ensopado em suor e com respiração ofegante, mas cada vez que passava por uma placa com mais 100d+ ganhava novo fôlego. Corremos por baixo, no meio e finalmente por cima das nuvens. Com calor e com frio. Em troços de tufos macios e por cima de rochas à altura da cintura. A subir, subir, subir... Estava a divertir-me como um miúdo! Às vezes entusiasmava-me e desatava a correr por ali acima, mas era sol de pouca dura, logo a subida me punha no lugar. A certa altura vejo a placa dos 900d+. Mas mas mas..ainda agora comecei! Olhei para o relógio e já ia quase com uma hora! Como é possível, não dei pelo tempo a passar! Apertei um bocado depois dos 900d+, até que comecei a ver o pórtico de chegada. 

Como sempre, lá estava a Sara e a Maria Amélia à minha espera. Passei os bastões para uma mão e desatei a correr para ficar bem na fotografia!



Passei a meta 1 hora e 4 minutos depois de partir, o que como sempre me colocou a meio da tabela. Se foi bom? Não sei.. O que sei é que depois de cortar a meta fiquei com um amargo de boca. Ok, a subida foi brutal, super divertida e dura, mas...acabou tão depressa! Quer dizer, uma pessoa mete-se em coisas destas espera pelo menos uma pequena parte de sofrimento e superações épicas! Mas não..hoje foram só boas sensações, diversão, boa disposição...bah! :)

Da próxima vez levo esta peça de equipamento, já deve puxar mais pelo cabedal!
Agora mais a sério. Foi uma experiência nova que já queria fazer há algum tempo. Toda a gente que anda nos trilhos devia experimentar uma vez, porque é completamente diferente do habitual. É quase como um maratonista que vai fazer uma prova de 10km! Uma dose grande de adrenalina, mas acaba depressa de mais. Agora é hora de voltar aos treinos, o próximo desafio está quase aí - Trail Serra da Lousã (42km). Aposto que esta vai ter mais drama!